Pediram-me que lhes falasse sobre minha experiência de vida, as “Reminiscências”. O Dicionário Aurélio define experiência como a prática da vida, a prática adquirida no exercício constante de uma profissão. Eu nada mais fiz do que adquirir experiência e reparti-la com os outros. Filho de imigrantes libaneses radicados no estado do Pará, nasci, fui criado e estudei na cidade de Belém. Terminando o curso secundário no Ginásio Paes de Carvalho, ingressei em 1935 na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, fazendo parte de uma turma brilhante, diplomada no dia 08 de dezembro de 1940. Nos dois últimos anos do curso, fui interno do Pronto Socorro de Belém e da Santa Casa de Misericórdia do Pará e minha inclinação já era para a Ortopedia. O recurso foi procurar estagiar no Rio de Janeiro ou em de São Paulo. Assim junto com Clovis Meira, colega de turma, decidimos vir para o Rio de Janeiro. Ele se especializaria em Cirurgia Geral e eu em Ortopedia. Chegamos em abril de 1941 com uma carta de recomendação ao Dr. José Paulo de Azevedo Sodré e outra para o Secretário de Saúde do Rio de Janeiro. Fomos estagiar no Hospital de Pronto Socorro, hoje Souza Aguiar. Permaneci no Pronto Socorro, na equipe Benjamim Batista, chefiada por Paulo de Azevedo Sodré. Eu não imaginava que havia começado uma mudança radical em minha vida. Nesta época o Rio de Janeiro era tranquilo e as coisas fáceis, andávamos de bonde. Clovis e eu repartíamos um quarto de pensão, primeiro no Catete e depois em Laranjeiras, onde ele tinha uma tia. .Aos domingos almoço com a família Cruz, isto amenizava a vida de pensão e a mesada curta. Mais tarde eu viria a me casar com a filha do casal. Em maio de 1941, Armando Nogueira, cirurgião da equipe do Hospital de Pronto Socorro, sugeriu que eu fosse para o Hospital Jesus, recomendando-me a Osvaldo Pinheiro Campos. Quando lá cheguei o encontrei na antessala de cirurgia, sentado no chão e com um gorro de “stockinet”, imagem que nunca esqueci. Naquele momento nascia uma amizade que exerceu muita influência na minha vida. Guardo de Osvaldo Campos uma lembrança sagrada. Incorporei-me imediatamente ao Hospital Jesus, que com seis anos de funcionamento já era uma Escola de Ortopedia Pediátrica. A vida de médico, no início dos anos quarenta, era tranquila, com a eterna queixa de que se ganhava pouco mas, nem por isso, a relação médico-paciente perdia qualidade. No Hospital Jesus, em 1941, a maioria dos pacientes internados sofria de doenças, sem muitos recursos terapêuticos: infecção osteo-articular, tuberculose e paralisia infantil. Fui para passar seis meses e nunca mais sai. Foi lá que aprendi, mais do que ser especialista, a ser médico. Fim de 1941, fim de mesada, fim de estágio e volta marcada para Belém. Num jantar de despedida oferecido por Osvaldo ele encorajou-me a continuar no Rio de Janeiro. Passei a ajudá-lo nas intervenções cirúrgicas, seguindo-o no Hospital Jesus. Ao final de 1942 Osvaldo me perguntou se eu estava disposto a ir para o Estados Unidos para o Shriners Hospital for Crippled Children de Filadelfia. Logico que aceitei e, no dia 1º de julho de 1943, já estava no Shriner’s . Lá, o chefe era John Royal Moore o melhor cirurgião que conheci. Absorvi dele a técnica sem nunca ter feito uma operação, servindo apenas como auxiliar. Por recomendação de Moore, em março de 1944, fui para a Universidade de Iowa, Serviço de Ortopedia do Professor Arthur Steindler como associado de pesquisa e com uma bolsa de 60 dólares mensais. Acumulei trabalho de residente e pesquisador, em troca de alojamento. Confeccionei minha tese e, em 14 meses (1945), obtive o título de “Master of Science” em Ortopedia. Em Iowa encontrei também Ignácio Ponseti, residente sênior, amizade que perdura até hoje. Voltei para o Hospital Jesus. E mesmo tendo trabalhado em outras instituições, jamais o abandonei. Os 25 anos compreendidos entre 1945 e 1970 foram anos dourados para a Ortopedia. Em 1944 eu estava em Iowa quando a penicilina foi liberada para uso na população civil. Era a vitória sobre as piogênica. Em 1949 a estreptomicina contra a tuberculose, mas, para mim, a maior conquista foi a vitória sobre a paralisia infantil com a chegada da vacina Salk em 1954 e da Sabin em 1963. Anos após a OMS declarou a paralisia infantil erradicada no Brasil e será impossível para as novas gerações avaliar o impacto dessa experiência. O Hospital Jesus florescia, e lá ocorreu a primeira operação de escoliose com Harrington e, o primeiro alongamento de tíbia pelo método de Anderson no Rio de Janeiro. Assumi a chefia do Serviço de Ortopedia do Hospital Jesus em 1974 e já estava consolidada a formação de especialistas por meio da residência oficial, iniciada em 1967. Afastei-me da chefia em 1986 por aposentadoria, sendo substituído pelo Dr. Meton Alencar, e mais tarde a chefia foi para Dr. Pedro Carlos Morais Sarmento Pinheiro que esta lá até hoje. Ingressei na Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia em 1946, haviam poucos membros e o ingresso era feito mediante apresentação de trabalho e currículo. Me dediquei aos trabalhos da Sociedade fazendo-me sempre presente. Ocupei cargos eletivos em diretorias de regionais e da nacional. Presidi a Regional do Rio de Janeiro e fui da Comissão Executiva da nacional por muitos anos, lutando sempre em defesa da Sociedade e de seu prestígio. Minha atividade na Sociedade culminou com minha eleição para Presidente em 1971 no Congresso, presidido por Bruno Maia no Recife. Por coincidência, tomei posse dois anos depois no Congresso realizado aqui em Curitiba, sob a presidência do saudoso Heinz Rücker. Estou na RBO, desde 1966, ocupo um lugar no corpo editorial e atualmente como subeditor. Desde o plano nacional de residência em 1969 e o respectivo exame para obtenção do TEOT fiz parte da Comissão Examinadora, inicialmente, em 1971, em Belo Horizonte, depois em Ribeirão Preto e agora em Campinas, por 23 anos seguidos. Guardo com carinho o título de Membro Emérito que me foi outorgado. A prática da Medicina mudou muito durante os 55 anos de minha vida profissional. Melhorou com o avanço tecnológico no pós-guerra, mas, por outro lado, piorou com a mudança no comportamento do médico que passou a se preocupar com a doença e se afastou do doente. O mito da medicina acabou e o médico passou a ser olhado como um prestador de serviços como outro qualquer. Caberá aos mais “velhos” incutir nos mais jovens o renascimento do humanismo. Em mais de cinquenta anos percorri uma longa estrada, venci metas, subi até onde podia chegar, sem me descuidar daqueles que me acompanhavam, dispensando-lhes ensinamentos profissionais e morais. Tudo o que fiz não teria valor se não tivesse encontrado na vida uma mulher admirável que acompanha meus passos e muito me ajudou na caminhada.